sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Olho-te Nos Olhos e Vejo Apenas Rancor

Participando do Projeto Bloínquês - Contos

homem com olhar triste e rancoroso

      Oi, pai, sou eu! Será que me ouve? Dizem que quem está sob efeito de anestésico, ouve o que acontece por perto. Eu creio que me ouve sim porque o efeito já está passando e o senhor já começa a abrir os olhos; por isso estou aqui para lhe falar um pouco, já que quando estava bem não tínhamos um bom diálogo. Bem, esse não será um diálogo e sim um monólogo. Acho que só assim para o senhor ouvir sem me olhar com essa carranca fechada.

      Não sabemos quanto tempo o senhor vai ficar por aqui, mas lhe asseguro que os médicos estão fazendo o possível para o senhor sair dessa, com a saúde boa e ainda com uns bons anos pela frente.

      Pois é, meu pai, o fim da vida. Como é se sentir no fim da vida? O que o senhor vê e sente quando olha o passado? Foi difícil, né? Isso todos nós sabemos e sentimos na pele, dia a dia, convivendo com o senhor que sempre fez questão de despejar em nós toda sua amargura e rancor. Agora me responda, meu pai, resolveu alguma coisa? Os problemas se resolveram, as pessoas mudaram, o mundo evoluiu de acordo com o que o senhor tanto pregava? Não, nós sabemos que nada mudou por conta de seu rancor.

      A mamãe sofreu muito esse tempo todo e vez ou outra eu a pegava chorando pelos cantos, magoada, por ouvir desaforos que o senhor lhe despejava, lamentando a falta de sorte de não ter tido uma vida como desejava. Mas já lhe passou pela cabeça que a vida não foi como planejava porque o senhor sempre alimentou esse rancor de uma vida difícil, enquanto os outros irmãos, meus tios, sempre tiveram "sorte" na vida e batalharam para conseguirem o que tinham vontade? Foi isso que aconteceu! Eles viveram a vida deles, enquanto o senhor ficava assistindo e se esqueceu da sua própria vida. Sorte deles? Não! Trabalho, batalha, sonhos realizados, tudo isso é progresso na vida de qualquer um. Eles são gratos, que eu sei, pelo senhor ter sido o homem da casa e sustentado todos, enquanto ainda era muito jovem e eles pequenos. Mas o senhor insiste em dizer que todos lhe devem muito. Devem o quê?

      Lembro uma vez em que tio Daniel veio lhe mostrar o carro novo e o senhor sequer se levantou do sofá para ir lá conferir e parabenizá-lo. Ao contrário, ficou reclamando com a mamãe o porquê todo mundo tinha carro novo menos o senhor. Depois pegou o fusca e bateu num poste acabando com ele e quase com sua vida também. Que culpa tem mamãe e o poste?

      Vou lhe dizer uma coisa, meu pai, eu não gostava de sair em família. Não suportava o senhor praguejando tudo o tempo todo, como se todos fossem culpados por tudo. É muito ruim ficar perto do senhor, é muito ruim conviver com uma pessoa que só reclama e fala mal das pessoas, como se tivesse a verdade absoluta na ponta da língua, é horrível ter que ficar perto de uma pessoa que não tem um mínimo de senso de humor e condena até quando os outros se divertem. Meu pai, estou aqui só para lhe dizer isso.

      Está na minha hora de sair, mas espero, de coração, que o senhor tenha entendido tudo o que eu disse. Eu sei que o senhor entendeu, pela lágrimas que escorrem de seus olhos.

      Ah, só mais uma coisa: ainda há tempo para mudar esta situação. O senhor ainda tem vida, é forte e vai se recuperar. Ainda há tempo de olhar para trás e ver as coisas boas que o senhor plantou e esquecer o que de ruim aconteceu. Aconteceu porque tinha que acontecer; não tem volta. A vida é daqui para frente. Olhe ao seu redor e veja quanta luz, quantas cores, olhe seus netos crescendo, olhe para a gente e retome a família. Mas se modifique antes, colocando um sorriso no rosto e um amor no coração. Nós todos lhe amamos e queremos muito o bem do senhor.

      Então é isso. Já vou indo. Fique com Deus! A sua bênção.

      Fim.

18 comentários:

  1. Olá Clara, bom dia. Todos nós conhecemos pessoas assim. Parabéns genuínos por este texto. Um abraço.

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    1. Olá, Manuel, bem-vindo!

      São pessoas tristes que não sabem conduzir a própria vida.

      Abraços!

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  2. Forte demais este texto...me vi em certos momentos dizendo a mesma coisa.

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    1. Pois é, Patrícia, às vezes não nos damos conta de muitas coisas... infelizmente!

      Beijos

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  3. Gosto muito da intensidade do seu discurso.
    Cadinho RoCo

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    1. Obrigada, Cadinho, é sempre bem-vindo por aqui!

      ótimo sábado! beijos

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  4. Que lindo conto e pARTICIPAÇÃO.bOM TE VER NO pROJETO! BEIJOS PRAIANOS,CHICA

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    1. Estou gostando muito desse projeto, Chica!
      Compartilhar um mesmo assunto de várias formas, é muito bom!

      Beijos interioranos, querida!

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  5. Clara Lúcia,
    tudo bem?
    Em primeiro lugar quero te agradecer pela visita ao meu blog, também estou seguindo o teu!
    Um conto muito intenso e de caráter intimista, pensei uma série de coisas... sobre as impossibilidades, que o tempo não volta mais, e a vida é breve, mas sempre resta a esperança.
    Muito sucesso no bloinquês!
    Beijos e ótimo fim de semana!

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    1. Bem-vinda, Cecília!!!

      É exatamente isso! A vida passa e não tem volta!

      Obrigada!
      Beijos

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  6. Olá Clarinha!

    Parabéns pelo conto. De facto está muito intenso. Faz reflectir.
    Uma pergunta, qualquer pessoa pode participar neste projecto Bloinquês?

    Obrigada.

    Um beijo,

    Cris Henriques

    http://oqueomeucoracaodiz.blogspot.com

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    1. Cris, a vida passa e às vezes não nos damos conta...

      Obrigada!

      Te respondi lá no seu blog. Beijos

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  7. A Cris do blog "O que o meu coração diz" falou-me deste conto. Impressionante como me revi em algumas dessas situações.
    Parabéns escreves muito bem, gostei e vou-te seguir.
    Beijinho
    Idália Henriques
    http://falandocomosmeusbotoes.blogspot.com

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    1. Bem-vinda, Idalia...

      Muito obrigada pelo gentil comentário...
      Vou retribuir, com certeza.

      Beijos

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  8. Pois é... estou vivendo isso, só que sem a doença!!!

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  9. Que triste....

    Mas enquanto há vida, hé esperança e há como mudar, qdo se quer.

    Beijos

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  10. Mais um texto lúcido e forte como, de resto, a Clara nos vem habituando. E quem não conhece alguém assim? Eu mesma tenho um familiar muito parecido com esse pai que vc descreve.

    Beijinho querida, uma doce semana, e parabéns por participar em mais esse desafio.
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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  11. As vezes as pessoas passam pela vida e deixam o melhor por viver.Simplesmente passam e deixam um rastro de amargura, que nem no leito de morte se prestam a rever.Seu texto foi feliz na construção dos persosnagens num belo dialogo/monologo,que faz refletir, sobre o que pesa e vale nesta vida.
    Vivamso pelo amor e com amor, alegria no coração e doação do melhor de nós sempre.
    Aplausos Clara, belo trabalho criativo.
    Um abração de paz e luz.
    Bjo

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